As virtudes da gula

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Por: Elídio Vilanculo

 

Hoje é dia de festa, não me vai embaraçar a notificação remetida pelo mensageiro da madrugada, selada pelas acusações da consciência. Quero ver os arbustos estacados no solo das minhas gengivas a desabrocharem, satisfeitos com a tritura dos nacos de carne que fenecem. Quero ver os meus beiços afogados na espuma da cevada, turbinada pelas invisíveis lombrigas estomacais do álcool, que trepam-me, enrolando as suas caudas nos galhos do meu cérebro.

Prefiro esta compensa de iguarias, não me move o pudor da penitência do mendigo que arrasta os seus farrapos de esperança no pedestre da penúria – à busca de nacos de pão.

Não me interessa, vou debicar primeiro estes grãos de migalhas até que as botas fiquem desprovidas de solas de tanto lambida a poeira.

Hoje é dia de festa, serei a boca do rio que engole sapos, escarros e berros vomitados pelo esgoto, serei isto só, só isto por esta noite para matar as serpentes peçonhentas que me mordem o estômago repentinamente. É por isto que me mantenho horas e horas, imóvel, agarrado com todas as minhas forças à praça dos vadios, para servir de contentores de lixo dos condomínios apetrechados de glamour.

Prefiro assim sobreviver, rodeado de túmulos dos mil alvos que tombam nas matas, nos campos e na fuga dos seus medos, estes que saciam o celeiro dos órgãos humanos decepados. Mesmo que cresça o tumulto dos gritos no rio que transporta os ossos caiados, directamente para o íntimo dos tormentos.

Hoje é dia de festa, festa de inauguração da retaliação, simplesmente me vou fechar; esta frágil garganta que engasga ao engolir a raiva misturada na saliva, pois a tesoura já está posta na fita da garganta e, conseguintemente, não me apetece beber o vinho da festa com a boca da garganta, como aquele atrelado de Chaimite que dançara ao ritmo da música de agonia.

Prefiro beber deste barril para enveredar ao sol que me vigia. Dêem-me agora aquela garrafa de vidro transpirando o cheiro aguçado de álcool, para corroer a ferrugem da vergonha, de remorsos e de arrependimentos permeados pela esponja da minha consciência, quiçá, estas breves gotas levem consigo o peso da gordura dos nacos e o álcool das bebidas usufruídas às escuras.

 

Fonte: O País

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