Por: Sara Seda
Em algum lugar entre o bairro em expansão e o centro da cidade, vive uma criatura mítica, com laterais abertas, bancos improvisados e um nome digno de novela mexicana: My Love. Não tem ar condicionado, não tem janelas, mas carrega mais corações por metro quadrado do que qualquer outro transporte público moçambicano. O volante gira lá na frente, mas o espetáculo acontece cá atrás.”
Já havíamos no esquecido do transporte adaptado, é verdade. Mas eis que surge ele, glorioso, saído do improviso e da boa vontade de um qualquer “senhor dono de camião”, talvez um ex-motorista de chapa reciclado, talvez um empreendedor de ocasião, que decidiu que já que o Estado não transporta, então que se transporte com amor. Literalmente.
Lá vem! Lá vem!”, gritam as crianças à beira da estrada, apontando com entusiasmo. Algumas riem, outras acenam, como se o camião fosse um herói de filme que só aparece uma vez por dia. Sorriem com aquela inocência que ainda não conhece a arte de se equilibrar com um pé no banco, outro no balde de alguém e a alma nas mãos de Deus.
No inverno, o My Love tem seu charme: o calor humano, corpos colados, abraços involuntários, e uma espécie de união nacional feita de frio, poeira e paciência. Lá no fundo, as senhoras dividem espaço, histórias e até dicas de cozinha, entre um suspiro cansado e outro. Os senhores na beira do camião fazem cálculos mentais de quantas lombas faltam. Mas ninguém, ninguém fala dos assédios que se escondem nesse amontoado de carne e metal. É o tipo de silêncio que se aprende na força do hábito. No verão, o cenário muda. O sol é impiedoso, o suor escorre em solidariedade, mas pelo menos há ar livre, ou melhor, ar semi-puro, já que a estrada é de terra batida, e cada curva levanta uma tempestade em miniatura. Ainda assim, é melhor que aquele bafo azedo dos autocarros que não aparecem.
O problema do transporte em Moçambique é antigo. Vem desde o tempo da chapa 100, que já não era 100 há muito tempo. Agora estamos num tempo sem chapa, sem planos, e com muito improviso. As zonas crescem, os bairros se expandem como massa de pão ao sol, mas o transporte… esse fica para trás.
Afinal, de que vale planear uma cidade se ninguém consegue sair dela?
Bairros como Zimpeto, Matola-Gare, Guava, matibswana, Godloza, Mulotana, vivem um crescimento acelerado, , construir uma casa é fácil, difícil é chegar ao trabalho sem virar parte da carga pois o transporte continua parado no tempo. O Estado promete terminais modernos, frotas novas, até aplicações móveis. Mas no dia a dia, quem salva é o My Love da resistência popular. Carrega tudo: trabalhadores, bebés, galinhas (às vezes), sacos de mandioca, panelas, frustrações e toda uma esperança de que um dia, quem sabe? alguém, num gabinete com ar-condicionado, lembre que transporte não é luxo: é direito.
Até lá, seguimos firmes, equilibrados entre a lona do camião e a boa vontade do motorista. No fundo, é como dizem: “Quem nunca viajou num My Love, não conhece Moçambique de verdade.”






