Resumo
A cultura é um campo de disputa pelo controlo da narrativa e da identidade de uma sociedade. Governos e elites reconhecem o poder da cultura para moldar a sociedade, através de monumentos, festivais e narrativas escolares. A política cultural define quem é lembrado e que tradições são valorizadas, sendo uma escolha estética que define identidades. A cultura pode produzir consenso social e servir como ferramenta de propaganda para estabilizar o poder. No entanto, também pode desafiar o poder, com artistas a denunciar abusos e dar voz a grupos marginalizados. A liberdade cultural é frequentemente atacada quando o poder se sente ameaçado, pois a cultura crítica expõe o que o discurso oficial tenta esconder.
Por muito que se queira afirmar o contrário, a cultura nunca foi apenas expressão artística ou património simbólico. É, desde sempre, um terreno de disputa, quem controla a narrativa cultural, controla também a forma como uma sociedade se vê, se posiciona e se projecta no futuro. A cultura, neste sentido, é uma forma de poder, muitas vezes mais subtil e mais eficaz do que estratégias partidárias explícitas.
Ao longo da história, governos, movimentos sociais e elites económicas reconheceram o poder da cultura como instrumento de moldagem social. Monumentos, bandeiras, canções patrióticas, festivais, memorializações e até narrativas escolares funcionam como marcadores de uma identidade desejada. A política cultural define quem merece ser lembrado e quem pode ser esquecido, que tradições são legitimadas e quais são relegadas ao silêncio.
Quando um governo decide financiar um certo tipo de arte ou tradição em detrimento de outra, está a fazer uma escolha estética, definindo que identidades são valorizadas. A selecção do que integra o “património nacional” é política na sua essência.
Ao mesmo tempo, a cultura pode servir para produzir consenso social, convencer os cidadãos de que partilham uma história e um destino comum, mesmo quando as realidades económicas e sociais apontam para desigualdades profundas. É também nesta dimensão que a cultura se torna ferramenta de propaganda, estabiliza o poder ao criar símbolos que o tornam natural, familiar e, por isso, menos questionável.
Mas se a cultura pode servir para consolidar o poder, pode também desafiá-lo. Músicos, cineastas, escritores, artistas de rua e colectivos culturais têm sido decisivos em denunciar abusos, abrir debates proibidos ou dar voz a grupos invisibilizados. É por isso que, em muitos contextos, a liberdade cultural é das primeiras a ser atacada quando o poder se sente ameaçado.
A cultura crítica incomoda porque expõe aquilo que o discurso oficial tenta ocultar. E quando uma obra artística gera desconforto público, talvez signifique que está a actuar onde realmente deve, no nervo da sociedade.
Entre narrativas oficiais e expressões emergentes, Moçambique oferece um exemplo claro da força política da cultura. No pós-independência, a cultura foi mobilizada como elemento de unidade nacional, valorizando-se conteúdos capazes de reforçar a ideia de libertação e soberania. O país construiu símbolos poderosos ligados à sua história revolucionária, essenciais para a consolidação do Estado recém-formado.
Contudo, as novas gerações questionam essa narrativa única. Músicos urbanos, cineastas independentes, comunidades artísticas digitais e movimentos de juventude têm vindo a propor visões alternativas sobre identidade, memória e futuro. E essas expressões nem sempre cabem confortavelmente nas molduras oficiais.
Uma política cultural que intervém para garantir acesso, diversidade e preservação é desejável e necessária. O perigo surge quando a política tenta apropriar-se da cultura para orientar comportamentos, silenciar dissidências ou dirigir a emoção colectiva.
A vitalidade de uma democracia mede-se também pelo espaço que concede a narrativas divergentes, as que celebram, mas também as que criticam. Quando a cultura se transforma em instrumento de marketing político, perde-se humanidade, perde-se pluralidade, e perde-se visão.
Se a cultura pertence ao povo, como frequentemente se afirma, então o povo deve ter voz nas decisões culturais: o que apoiar, o que preservar, o que transmitir às gerações futuras. A autonomia da cultura é, na verdade, autonomia dos cidadãos. Proteger essa autonomia é garantir que a sociedade continua capaz de se ver, rever e transformar sem que ninguém escreva, sozinho, o guião identitário do país.
Porque quando a cultura deixa de ser um instrumento de participação e passa a ser apenas um instrumento político, o que fica comprometido não é a arte, mas a própria liberdade.





