Resumo
A cimeira do G20 em Joanesburgo foi histórica por ser a primeira realizada em solo africano. Apesar do boicote dos EUA, a África do Sul liderou uma frente que aprovou uma declaração conjunta, contrariando Washington. O texto final reforça o multilateralismo, aborda a desigualdade global, destaca a crise climática e propõe reformas na dívida. A cimeira reposiciona o Sul Global como ator central na nova ordem económica. A presidência sul-africana transformou a ausência dos EUA numa afirmação estratégica, evidenciando que a África não quer mais estar na periferia, mas sim definir agendas e resultados. O boicote dos EUA foi justificado falsamente, sendo motivado por questões económicas e estratégicas. Washington rejeitou a agenda sul-africana sobre apoio aos países em desenvolvimento em áreas como energias limpas, redução da dívida e financiamento climático.
África Assume o Centro das Decisões Económicas Globais
A realização da cimeira em Joanesburgo inverte décadas de marginalização africana nas decisões estruturais de governação económica global. Pela primeira vez, o principal fórum de coordenação macroeconómica reúne-se em África num momento em que a economia mundial enfrenta inflação persistente, tensões políticas entre grandes potências, fragmentação das cadeias de valor, desaceleração do crescimento mundial, volatilidade dos mercados energéticos e níveis críticos de endividamento nas economias emergentes.
A presidência sul africana transformou aquilo que muitos acreditavam estar condenado pela ausência dos Estados Unidos num acto de afirmação estratégica. A mensagem transmitida é clara: África já não aceita estar na periferia. Quer definir agendas, prioridades e resultados.
O Boicote Norte Americano e o Confronto com o Multilateralismo
Os Estados Unidos boicotaram formalmente a cimeira alegando, de forma comprovadamente falsa, que o Governo sul africano perseguia a população branca. As razões reais eram económicas e de posicionamento estratégico. Washington rejeitava a agenda proposta pela África do Sul relativa ao apoio aos países em desenvolvimento na transição para energias limpas, na redução dos custos da dívida e no acesso a financiamento climático.
Este confronto colocou em evidência a ruptura entre as prioridades norte americanas e as aspirações de África, da América Latina e de grande parte da Ásia, que exigem soluções mais justas para a crise da dívida, financiamento climático adequado, industrialização em bases tecnológicas modernas e políticas que reduzam desigualdades.
Apesar da pressão dos Estados Unidos, o boicote acabou por isolar Washington e fortalecer a cooperação entre os restantes membros. Segundo o documento consultado, a África do Sul conseguiu unir todos os países, excepto os Estados Unidos e a Argentina, em torno da declaração conjunta.
Pretória Rompe o Cerco Diplomático e Consolida Liderança Africana
A actuação de Cyril Ramaphosa tornou-se um dos momentos diplomáticos mais assertivos da história africana no G20. O Presidente sul africano afirmou publicamente que a aprovação do documento reflecte um compromisso renovado com a cooperação multilateral e destacou que os objectivos comuns prevaleceram sobre as diferenças.
Pretória não cedeu às exigências de Washington. Recusou o pedido para que a transmissão da presidência fosse realizada através de um diplomata subalterno e garantiu que a cerimónia ocorresse entre representantes equivalentes, preservando a dignidade institucional da presidência africana. Este gesto simboliza a nova postura do continente, firme e consciente do seu peso estratégico num mundo em transição.
A Declaração de Joanesburgo: Conteúdo Económico com Alcance Estrutural
A declaração adoptada tornou-se um dos documentos mais importantes desde a crise financeira de dois mil e oito. O texto enfatiza a gravidade da crise climática, a necessidade de adaptação dos países vulneráveis, a relevância de metas ambiciosas de energias renováveis e denuncia o peso insustentável do serviço da dívida que recai sobre economias de baixo rendimento.
Esta formulação ganha especial importância porque representa exactamente a agenda que Washington tem procurado bloquear em fóruns internacionais. Para além disso, o documento introduz três eixos com impacto estrutural.
O primeiro é a afirmação da desigualdade como variável macroeconómica. Pela primeira vez, um G20 coloca a desigualdade no centro da agenda económica. A criação de um painel global dedicado ao tema demonstra que as lideranças mundiais reconhecem que desigualdade não é apenas um problema social, mas um risco para o crescimento e para a estabilidade económica internacional.
O segundo eixo refere-se ao financiamento climático e à transição energética. O documento apresenta compromissos relativos à expansão das energias renováveis, justiça climática, adaptação a fenómenos extremos e reforço dos instrumentos de apoio aos países mais vulneráveis.
O terceiro eixo diz respeito à dívida soberana e à arquitectura financeira internacional. A declaração aponta para a necessidade de aliviar a pressão que recai sobre países com elevados encargos financeiros e reconhece que o actual sistema reforça vulnerabilidades em vez de promover estabilidade e crescimento.
Joanesburgo no Centro das Tensões Geopolíticas e Económicas Globais
A cimeira ocorreu num contexto marcado pela guerra na Ucrânia, que fractura alianças tradicionais e desafia a liderança económica europeia. O encontro surge também após a COP trinta, realizada no Brasil, que falhou em incluir qualquer menção aos combustíveis fósseis devido à oposição de grandes produtores e grandes consumidores. Estes insucessos contrastam com o resultado de Joanesburgo, que conseguiu produzir união onde outros fóruns internacionais falharam.
Líderes globais reforçaram esta percepção. O Presidente brasileiro, Lula da Silva, afirmou que tanto o G20 como a COP trinta demonstram que o multilateralismo continua vivo. O Chanceler alemão, Friedrich Merz, acrescentou que os Estados Unidos tiveram papel marginal no encontro e que o mundo está a reorganizar-se sem depender do poder norte americano.
A Economia Mundial Depois de Joanesburgo
A cimeira projecta várias tendências que moldarão a próxima década da economia global. Entre elas, destaca-se o avanço do Sul Global como bloco influente nas negociações financeiras e energéticas. A desigualdade passa a ser tratada como questão económica central. A dívida soberana dos países vulneráveis ganha prioridade internacional. A transição energética transforma-se num elemento de política industrial e de competitividade. O G20, por sua vez, emerge revitalizado e confirma o seu papel como fórum indispensável para coordenar decisões macroeconómicas com impacto global.
Para África, e para Moçambique em particular, esta cimeira abre novos horizontes: maior pressão internacional para aliviar a dívida, expansão do financiamento climático, reforço da voz africana nas reformas das instituições financeiras internacionais e novas oportunidades ligadas às cadeias de minerais críticos e à transição energética.
Joanesburgo não foi apenas palco da primeira cimeira do G20 em África. Foi o lugar onde o equilíbrio da economia mundial começou a mover-se. A África do Sul sai fortalecida, o multilateralismo ganha nova vida e o Sul Global afirma-se como agente activo na redefinição das regras económicas do século vinte e um. A grande questão que permanece é saber se os compromissos assumidos serão implementados de forma consistente ou se esta vitória ficará registada como um raro momento de unidade num sistema internacional ainda profundamente contestado.
Fonte: O Económico






