Resumo
Márcia Langa enfrenta uma jornada difícil desde o nascimento do filho Edmilson, que sofre de uma doença rara e incurável em Moçambique. Após um parto complicado e diagnósticos errados, Edmilson foi diagnosticado com malária, exigindo tratamentos intensivos e internamentos frequentes. A luta de Márcia revela os desafios enfrentados pelas famílias de pacientes com doenças raras no país, onde a ciência avança lentamente e os tratamentos são dispendiosos. A história destaca a persistência e esperança das famílias em meio à adversidade, mostrando o lado invisível dessas condições em Moçambique.
A 6 de Outubro de 2009, Márcia Langa entrou na maternidade do Hospital Provincial de Inhambane com o coração cheio de expectativa. Ia nascer o seu segundo filho e, como acontece com quase todas as mães, aquele deveria ser um dia de celebração, de lágrimas felizes e de promessas silenciosas feitas ao recém-nascido. Nada, absolutamente nada, fazia prever que aquele momento marcaria o início de uma travessia longa, dolorosa e ainda hoje inacabada.
Pouco depois do parto, a alegria deu lugar à inquietação. Algo no bebé não parecia normal, mas ninguém sabia explicar o quê. Instalaram-se dúvidas, perguntas sem resposta e um silêncio desconfortável, mesmo entre profissionais de saúde habituados a lidar com situações complexas.
Márcia tentava decifrar cada sinal do filho, enquanto os médicos procuravam entender o que estava diante deles. Dois dias depois, recebeu alta e regressou a casa com o bebé nos braços, mas sem a serenidade que costuma acompanhar nos primeiros dias de maternidade.
Uma semana depois, o susto voltou com força. O recém-nascido foi diagnosticado com malária, uma condição grave para qualquer pessoa, ainda mais para uma criança tão pequena. Márcia regressou ao hospital e iniciou-se um ciclo de consultas, exames, tratamentos e internamentos. As noites tornaram-se curtas, os dias longos e a sensação persistente era a de que, apesar dos diagnósticos e medicamentos, havia algo mais profundo que permanecia inexplicado.
Na busca por respostas, Márcia percorreu unidades sanitárias, acumulou fichas clínicas e ouviu repetidas vezes a mesma palavra: dermatite. O filho aquecia constantemente, a pele apresentava alterações, os dentes não nasciam no tempo esperado. Nada se encaixava. Ainda assim, as respostas continuavam vagas. Determinada a não desistir, levou a criança ao Hospital Provincial de Xai-Xai, acreditando que novos olhares pudessem finalmente esclarecer o mistério. Mas também ali ninguém conseguiu identificar com precisão o que afectava o menino. As suspeitas apontavam para algo raro, estranho, pouco comum, mas sem diagnóstico conclusivo.
O tempo passou e a incerteza acumulou-se. Foi apenas em 2017, quando o menino já tinha oito anos e Márcia carregava quase uma década de angústia, que surgiu uma possibilidade concreta de esclarecimento. Com ajuda de amigos, conseguiu uma consulta no Hospital Central de Maputo. A esperança, porém, rapidamente se transformou em pesadelo.
Após horas de observação, veio um diagnóstico devastador: progéria, uma síndrome genética associada ao envelhecimento precoce e a uma expectativa de vida muito curta. Para Márcia, foi como receber uma sentença antecipada de morte do filho. Cada dia passou a ser vivido como se fosse o último, numa contagem regressiva silenciosa e cruel.
Durante dois anos, a família viveu sob o peso dessa previsão. Márcia acordava todos os dias com medo, rezando para que algo mudasse, para que houvesse um erro, uma alternativa, uma nova leitura daquele caso. Em 2019, a notícia que parecia impossível finalmente chegou. Um médico, após novos estudos, explicou que Edmilson não tinha progéria. O diagnóstico correcto era displasia ectodérmica, uma doença genética rara. A revelação trouxe alívio, mas também abriu uma nova fase de desafios.
A displasia ectodérmica explica sintomas que acompanharam Edmilson desde o nascimento: ausência de glândulas sudoríparas, produção reduzida de lágrimas, poucos dentes, pele extremamente seca e dificuldade em regular a temperatura corporal. Edmilson não transpira, sente calor constante, sofre fissuras dolorosas na pele e corre risco permanente de hipertermia.
O diagnóstico deu nome ao problema, mas não trouxe cura. Apenas orientações rigorosas para lidar com os sintomas: evitar o sol, manter o corpo fresco, hidratar constantemente a pele, cuidados alimentares específicos e acompanhamento médico contínuo.
Na prática, a rotina da família transformou-se num exercício permanente de vigilância. Edmilson precisa molhar o corpo várias vezes ao dia, beber muita água, usar chapéu e roupas adequadas. Na escola, enfrenta constrangimentos constantes. Para se proteger do calor, molha a roupa por baixo da camisa, sai frequentemente da sala para lavar o rosto e beber água. Apesar de autorizações formais, nem sempre encontra compreensão. O medo do julgamento alheio fez dele um adolescente retraído, desconfiado e, muitas vezes, solitário.
O “bullying” marcou profundamente a sua trajectória escolar. Em determinado momento, Edmilson quis desistir dos estudos. Foi preciso apoio psicológico para o convencer a continuar. Hoje, apesar das dificuldades, mantém-se firme na escola, determinado a não deixar que a doença ou o preconceito lhe roubem o futuro. Encontra conforto em poucos amigos que o aceitam como é e compreendem que a sua condição não o define.
ENFRENTAR CUSTOS
Do ponto de vista clínico, Edmilson realiza, em média, cinco consultas médicas por ano, incluindo dermatologia, oftalmologia, urologia, psicologia e genética. Muitas delas, porém, não acontecem com a regularidade necessária. A razão é simples e dura: falta de dinheiro. A maioria das especialidades de que precisa está concentrada em Maputo, a centenas de quilómetros de Inhambane.
As viagens, estadias e consultas representam um custo insustentável para a família. Há exames adiados, avaliações que não acontecem e tratamentos interrompidos, não por falta de indicação médica, mas por limitações financeiras.
Hoje, com 17 anos, Edmilson fala na primeira pessoa sobre o que vive. Descreve a sensação de ardor na pele, as bolhas que surgem após exposição ao sol, a dor nos lábios e nos olhos. Recorda episódios em que professores lhe exigiram retirar o chapéu, ignorando relatórios médicos. Ainda assim, insiste em seguir em frente, com uma maturidade forjada pela adversidade.
Quem acompanha o caso é o médico geneticista Luís Madeira, do Hospital Central de Maputo. Segundo o especialista, a displasia ectodérmica faz parte de um universo muito mais amplo de doenças raras. Actualmente, a literatura científica reconhece mais de nove mil doenças raras no mundo, número que continua a crescer à medida que melhoram as capacidades de diagnóstico. No caso específico das displasias ectodérmicas, existem cerca de 200 tipos diferentes, a maioria de origem genética e hereditária, mas não transmissível por contacto.
Luís Madeira explica que, em Moçambique, estão oficialmente identificados apenas cinco pacientes com displasia ectodérmica, mas alerta que o número real pode ser maior. A dificuldade em reconhecer os sinais, aliada às limitações diagnósticas, faz com que muitos casos permaneçam ocultos. Apesar de rara, a doença não é tão incomum quanto se imagina. Em contextos hospitalares com grande volume de partos, seria expectável identificar novos casos ao longo dos anos.
A displasia ectodérmica é grave e não tem cura. O tratamento é exclusivamente sintomático e visa melhorar a qualidade de vida dos pacientes. Inclui hidratação intensiva da pele, acompanhamento odontológico, uso de próteses dentárias, proteção contra o calor e vigilância médica permanente. Em países com sistemas de saúde mais robustos, esses cuidados são integrados. Em Moçambique, muitas vezes, dependem do esforço individual das famílias.
Além da doença em si, há um desafio estrutural que pesa ainda mais: o fraco poder de compra. Para muitas famílias, tratar os sintomas de uma doença rara é um luxo inacessível. Medicamentos, cremes, consultas especializadas e deslocações representam custos proibitivos. Para mitigar essa realidade, existem associações que procuram apoiar pacientes com doenças raras, facilitando o acesso a cuidados médicos e medicamentos, mas a cobertura ainda é limitada.
A história de Edmilson expõe, de forma crua, o lado invisível das doenças raras em Moçambique. Um país onde o diagnóstico tarda, o tratamento é caro e o peso recai quase sempre sobre as famílias. Ao mesmo tempo, revela uma extraordinária capacidade de resistência. De uma mãe que nunca desistiu de procurar respostas, de um adolescente que se recusa a abandonar a escola e de profissionais de saúde que, apesar das limitações, lutam para compreender e aliviar o sofrimento.
Enquanto a medicina avança na identificação de doenças raras, casos como o de Edmilson lembram que o desafio não é apenas científico. É também social, económico e humano. Dar nome à doença foi um passo decisivo. Garantir dignidade, cuidado contínuo e inclusão é o próximo.
Fonte: O País






