Anselmi: o «louco inteligente e metódico» que vai ser o novo timoneiro do Dragão

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«Nada nos acontece por acaso.» Este é o lema orientador da vida de Martín Anselmi, que serve de legenda perfeita para a mudança do argentino de 39 anos para o cidade do Porto, onde vai abraçar a primeira experiência no futebol europeu.

Anselmi começou a dar sentido a essa tal frase inspiradora desde os tempos de criança, no Bairro Caballito, em Buenos Aires, onde, ainda muito jovem, começou a trabalhar na empresa do pai, relacionada com impressões e estampagens, ao mesmo tempo em que estudava. Contam o pai, Mario, e a irmã, Laura, que era não era muito estudioso na escola, mas acabou por tornar-se num perfecionista no trabalho.

«Quando terminei o secundário, não podia seguir a carreira de treinador na Argentina. Tinha de ter 25 anos ou ter sido jogador de futebol. Então, para me aproximar, comecei a carreira no jornalismo desportivo, apesar de nunca ter exercido a profissão. Depois, aos 25 anos, enveredei pela carreira de treinador e não parei mais», contou o treinador numa entrevista à rádio Cadena Ser, em outubro no ano passado, na qual é apresentado como «o treinador que revoluciona o futebol do México».

Anselmi nunca foi jogador de futebol profissional, mas até tinha jeito para jogar. O problema, dizem os amigos, é que «se chateava muito e dava demasiadas ordens dentro do campo». Por isso, explusaram-no dos «Los Pasajes», uma equipa criada pelo seu grupo de amigos, cujo símbolo era uma caneca de cerveja.

Martín era o 10 e tinha escrito «Tanque» nas costas. «Éramos um grupo de jovens que gostava de jogar futebol com os amigos. Às vezes, estávamos de ressaca antes do jogo e ele queria jogar a sério. Ele era insuportável a jogar futebol! Jogava bem, mas estava sempre a pedir a bola para ele, gritava o tempo todo, era muito mandão. Insuportável! Já era um treinador dentro do campo», revelou o melhor amigo, Lucas Torres, num documentário feito por uma televisão mexicana sobre o agora próximo técnico do FC Porto.

Anselmi era mais treinador do que jogador e isso notou-se desde muito jovem. Acabou por tornar-se no técnico dos «Los Pasajes», aplicando métodos demasiado exigentes e profissionais para o nível de uma equipa de bairro, que não competia oficialmente.

Conta um outro amigo que, certo dia, a equipa não tinha nenhum campo para treinar e Anselmi, não conformado, levou os jogadores todos para casa e deu-lhes um treino a explicar as táticas através de um PowerPoint. «Um dia, estes rapazes ainda vão dizer que os treinei», escreveu Anselmi, no Facebook, em maio de 2012. E eles acabaram por dizer isso mesmo no tal documentário de uma hora, publicado há um mês, sobre a vida do atual técnico do Cruz Azul. «Ele tinha um plano», diz um dos amigos.

«Já era um louco naquela altura», acrescenta Ramiro Fernández, outro amigo de infância. E não era só no futebol que Anselmi era uma pessoa extramente obstinada. A irmã conta que uma vez Martín fez uma viagem de um mês para a Tailândia, sem dinheiro na carteira, pagando tudo com um cartão a crédito: «Quando regressou, como não tinha dinheiro para a para pagar a dívida, decidiu embarcar numa outra viagem, a Las Vegas, para comprar umas coisas – nada ilegal, atenção! –, para depois as vender aqui em Buenos Aires. Tudo acabou por correr bem porque, com o dinheiro que fez com essas vendas, pagou as duas viagens e tudo o que devia do cartão de crédito. Fazia estas coisas complemante loucas, mas que para ele faziam todo o sentido.»

Martín Anselmi é uma pessoa muito ligada à família, o pai é um dos ídolos de vida, mas o técnico argentino nunca se esqueceu daquilo que Mario lhe disse há mais de dez anos: «“Nunca vais ser treinador, porque nunca jogaste futebol profissional”, disse-lhe… E isso marcou-o muito», recorda o pai de Martín, de lágrimas nos olhos.

Em 2015, Anselmi começou a primeira experiência como técnico principal nos escalões de formação do Club Atlético Excursionistas, da quarta divisão da Argentina. «Já estava um passo à frente dos outros», lembrou o coordenador do clube, Daniel Marinelli. Martín trabalhava com um preparador físico e, juntos, ganhavam, menos de 150 euros por mês. Muitas vezes, a equipa não tinha sequer um campo do clube para treinar. Por isso, Anselmi pegava num dossiê com mais de 100 exercícios de treino e levava os jogadores de 16, 17 anos para trabalharem no parque Güemez, em Buenos Aires, e pedia à namorada na altura, hoje esposa, Bárbara Andreu, para filmar o treino do início ao fim.

«Subia às árvores para filmar tudo, para depois ele mostrar as jogadas aos miúdos. Nos jogos, era igual. Como era muito metódico, às vezes irritava-se comigo e dava-me ordens para filmar melhor, mas eu dizia-lhe que não percebia nada de futebol», conta Bárbara, a mulher que é descrita por Martín Anselmi como o seu «suporte de vida» e com quem tem dois filhos, Lolo e Lucca.

Apesar de ter revolucionado a equipa, a etapa nos Excursionistas terminou, em parte, por causa do estilo de jogo. Anselmi é um acérrimo defensor da posse e da construção a partir de trás, contando sempre com participação do guarda-redes.

O técnico quis implementar esse estilo na equipa de sub-17 que orientava, contrariando a ideia do coordenador geral do clube, que dizia que era processo demasiado «arriscado» porque «os defesas perdiam a bola atrás e sofriam muitos golos». Num jogo, a equipa sofreu mesmo três golos em 10 minutos da mesma forma e o tal coordenador apontou o dedo a Anselmi, que deixou o campo completamente fora de si, acabando, mais tarde, por deixar o clube de forma definitiva.

Uma das suas maiores referências é Marcelo Bielsa, antigo selecionador argentino conhecido por «El Loco». A tal ponto que, certo dia, Anselmi pediu a «Pepi» Bersce, uma espécie de mentor e responsável pelos primeiros passos da carreira do técnico, para faltar uns dias ao curso de treinador. Motivo: ia a Bilbau ver um jogo de Bielsa, que na altura orientava o Athletic.

«Adoro a forma como ele vive e sente o futebol e a vida. Além de que é um ídolo do Newell’s Old Boys», disse o treinador, que é adepto do clube de Rosario, onde Lionel Messi despontou para o futebol.

Voltando à viagem a Bilbau: para a pagar, Anselmi vendeu a mota. Já no País Basco, conseguiu através de um amigo contactar um dos adjuntos de Bielsa, que o convidou a assistir a um dos treinos da equipa técnica.

Martín tem muito de Marcelo. Cita Bielsa com frequência em entrevistas e publicações nas redes sociais. É estudioso, enérgico no banco, apaixonado e extremamente rigoroso. Quem o conhece, descreve-o como um «louco inteligente, estratégico, obcecado».

Prepare-se, adepto do FC Porto, para ver o treinador a festejar efusivamente um golo ao longo da linha.

Quando lhe perguntaram, há uns meses, o que gostava de fazer nos tempos livres respondeu: «Não sei se tenho algum hobby, porque me fecho muito no meu mundo à procura de soluções para dar a volta às coisas. Penso em demasia, eu sei que não é nada saudável, mas é assim que eu sou…»

A mulher, mais conhecida por Barby, acrescenta: «Ele é um analista, lembro-me sempre dele no computador. Ainda hoje é assim», conta num documentário em que surgem filmagens nas quais se vê Martín a analisar um jogo no computador com o filho, de poucos meses, ao colo. Numa outra entrevista, o treinador disse que gosta de receber amigos e família em casa para um «belo churrasco argentino». É também, segundo os amigos, um amante de xadrez.

Além de Bielsa, Anselmi tem como grandes referências Pep Guardiola e Roberto de Zerbi, mas também destaca o espírito competitivo de Diego Simeone e a forma de trabalhar do selecionador argentino, Lionel Scaloni.

A nível tático, destacou-se com o seu 3x4x3 no Independiente, adaptado a um sistema mais próximo do 3x5x2 no Cruz Azul, do México, mas também já jogou em 4x3x3.

«Queremos controlar os jogos através da posse de bola. Seremos uma equipa que irá forçar o erro do adversário e não ficará à espera que o adversário o cometa. Quero uma equipa agressiva, que perante a perda de bola tenha uma boa recuperação e, depois, tenha paciência para atacar. Não quero que nenhum rival nos ultrapasse, nos supere ou nos controle. Quero que sejamos os protagonistas», afirmou o treinador numa espécie de cartão de visita, em que também deixou uma visão particular sobre os resultados.

«Posso ganhar um jogo e não estar satisfeito com o que fizemos, porque tudo o que se analisa através do resultado está viciado. É colocando o foco na competência que te permite chegar mais longe», disse Anselmi numa outra entrevista em que destaca importância de tocar o coração de cada jogador: «O jogador mais importante é a equipa. É o meu único chefe, o chefe de Martín Anselmi é a equipa. Estou ao seu serviço e dessa forma procuro satisfazer todas as necessidades que os jogadores de futebol têm. Gosto de estar perto, de os entender e de me envolver.»

Com uma personalidade forte, Anselmi já teve problemas com alguns dos principais jogadores das equipas que orientou. Quando chegou ao Cruz Azul, há dois anos, teve uma discussão acesa com o então capitão Juan Escobar. Os dois ter-se-ão envolvido num confronto físico, depois de o treinador ter deixado o jogador no banco. Escobar acabou por sair do clube mexicano.

Ainda no campo das polémicas, Anselmi tem uma história com Renato Paiva, a quem sucedeu no Indepediente del Valle, do Equador, em 2022.

O português ex-Benfica considerou que Anselmi estava há algum tempo a tentar ocupar o seu lugar no clube.

«Como pessoa, é desilusão total», disse Paiva sobre o argentino à «DSPORTS Ecuador». Martín Anselmi contrariou as palavras de Renato Paiva: «Não tenho esse perfil. Nem precisei de fazer absolutamente nada para estar hoje num lugar que considero casa.»

Voltando ao início, e às dores de crescimento, Anselmi foi técnico adjunto e analista de jogos de vários treinadores como Gabriel Milito, antigo internacional argentino e jogador do Barcelona. Bebeu muitos dos homens com os quais trabalhou, mas quando quis embarcar sozinho numa aventura no Peru, em 2019, logo percebeu que a opção era a errada.

Ficou apenas três meses num projeto em que não conseguiu introduzir os seus métodos de trabalho e voltou para a Argentina sem trabalho no futebol, nem na empresa de impressões, onde trabalhara com o pai. Sem habitação própria, acabou por ir morar com a mulher e o filho mais velho para casa da sogra. Foram momentos duros durante três meses, até que foi chamado por Miguel Angel Ramírez para o acompanhar na equipa técnica do Indepediente del Valle.

Pouco tempo depois, venceram a primeira Taça Sul-Americana do clube equatoriano.

Mais tarde, em 2022, já depois de ter passado sem sucessos pelo Union Calera, do Chile, voltou ao Indepediente del Valle já como técnico principal, para suceder a Renato Paiva. Voltou a conquistar a Sul-Americana (segundo torneio continental mais importante, a seguir à Libertadores). Saiu do Equador com quatro títulos, juntando a Recopa Sul-Americana, a Taça e a Supertaça do Equador, antes de partir para duas épocas no Cruz Azul.

Agora, chegou a hora da despedida, marcada com um churrasco com os seus jogadores, na Cidade do México.

Ciente de que «o êxito muda» as pessoas, como diz o seu mentor Marcelo Bielsa, Anselmi vem para o FC Porto para assumir uma identidade vincada e vencer. Ou, como o próprio diz: «Para ser o mesmo de sempre.»

Fonte: Mais Futebol

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