como se carrega um fardo?

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Por: M.P.Bonde

Ao
Flávio Atanásio Chongola

Visitou-me por instantes, Jaime Sabines,
no quarto escuro, a janela desvenda o imaginário, as metáforas alugam por instinto o
diâmetro da letra O;
miro as inúmeras possibilidades desta vogal sob o fascínio do papel cândido:
opacidade,
óvulo,
ondas,
ordem,
orelhudo, olhares,
orfão,
onomatopeia,
orgulho,
obreiro,
orgasmo;

redijo cada letra com a perícia de uma coruja no cimo do galho seco; quieta, na
orfandade das manhãs, as folhas amarelecidas pelos tempo escondem o temor com
raios de luz espraiando no biombo.

Vem-me isto a propósito desta frase visceral:

“A poesia ocorre como um acidente, um golpe, uma paixão, um crime; ocorre
diariamente, sozinho, quando o coração do homem começa a pensar na vida”, Jaime
Sabines

Quem escreve desencanta tormentos, galopa sob a égide de um adeus inexistente na
atmosfera da paixão; Quando se inscreve nos píncaros do silêncio, a métrica flui
inquieta; advêm das entranhas o valor do acaso?

Dá-me gozo, como nestes últimos dias, percorrer o hemisfério condenado ao fracasso,
vigiar ainda que de permeio a metade do sono; há para lá das lamúrias e da podridão
estampada nos nossos olhos, a ingenuidade de um bebê que aprende com a língua o
sabor dos objectos;
este desabrochar sul-sul, este redescubrir de forças castradas ao longo do tempo, cria-
me câimbras na alvorada das esporas; é um mergulhar sobre as almas apedrejadas no
vale das lamentações;

manejar as palavras é um ofício, é encontrar a liberdade em meio aos caos, sangrar
pelos poros o brilho escondido da alma;

Como disse o poeta:

“Sempre que responder a uma experiência humana, será poesia. O poema tem apenas
uma medida, sua autenticidade. Estou chocado tanto com os poetas que escrevem
elegias para Che Guevara sentado à mesa de um café quanto com aqueles que falam
sobre divindade enquanto chutam um cachorro. Você não tem o direito de falar sobre o
que não experimentou; tudo o que for feito fora da experiência emocional será uma
construção verbal, um jogo divertido, mas não poesia”. Sabines

Pois é caro Sabines,

a experiência humana transmite-nos a realidade, ainda que de forma dolorosa, crava-
nos à carne os espinhos do medo, ódio e angústia e toda horda inquietante do
hemisfério;

a poesia é nada; este objecto circular, ingénuo, matreiro, fundamental na construção do
sonho;

E a metáfora?

Meta fora a hipotenusa da angústia! Abrande o entusiasmo na lonjura da loucura; um
ciclo é sempre um ciclo;
como se carrega um fardo?
quantas pétalas adornam o sabor da xícara?
a morte é sempre um emarranhado de acontecimentos inesperados, bate-nos a porta
com o bolor do silêncio na boca;

 

Fonte: O País

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