Quatro décadas após a estreia de “Tempo dos Leopardos”, considerada a primeira longa-metragem de ficção do Moçambique independente, o Cine-Teatro Scala acolhe uma mostra que homenageia as equipas moçambicana e jugoslava por detrás da obra.
A exposição, integrada nos Encontros do Património Audiovisual, divide-se em três núcleos: uma videoinstalação com arquivos jugoslavos filmados em Cabo Delgado em 1967, um memorial fotográfico aos membros da produção e uma amostra de um projeto de história oral que regista depoimentos de pioneiros do sector.
“Esta não é uma homenagem ao filme, que a merece, mas sim às pessoas que o tornaram realidade, muitas delas já falecidas”, explicou Diana Manhiça, curadora da iniciativa, durante a abertura.
Os testemunhos recolhidos revelam os enormes desafios logísticos e políticos da produção, realizada em pleno período de guerra civil e com severas limitações materiais.
Paula Ferreira, então directora de produção, descreveu situações que beiraram o surreal, como a necessidade de “caçar actores brancos no trânsito de Maputo” para papéis de soldados portugueses, negociar com a Força Aérea para obter helicópteros ou gerir uma “greve de fome” dos actores, cansados de uma dieta repetitiva à base de carne de peru.
“Foi a tarefa mais difícil da minha vida e talvez a mais importante. Porque no meio do caos, fizemos cinema. E isso, naquela altura, era um acto de fé”, afirmou Ferreira.
Para Valente Dimande, operador de som e actor no filme, a memória mais vívida é a de filmar cenas de guerra enquanto a guerra real decorria. “Os Migs (aviões de combate) bombardeavam e o realizador dizia: ‘Isso é um boom natural, Continuem a filmar”, recordou.
A actriz principal, Ana Magaia, revelou que a sua escalação para o papel enfrentou resistência de sectores políticos que a consideravam “não politicamente correcta” para o cargo.
“O realizador ficou em pé, porque achava que tinha que ser eu, mas, sobretudo, graças a um naipe de colegas que fizeram parte da equipa técnica, que também achavam que eu devia fazer aquele papel”, contou Magaia, salientando que a exposição funciona como um acto de “justiça” para com essas memórias.
O cineasta Licínio de Azevedo, coautor do argumento original, explicou que o projecto nasceu de meses de recolha de testemunhos no Planalto de Mueda, que deram origem ao livro “Relatos do Povo Armado”.
O guião, inicialmente intitulado “A Madrugada dos Embondeiros”, sofreu alterações profundas durante uma estadia na Jugoslávia para trabalhar com argumentistas locais, resultando no filme que hoje se conhece.
A exposição no Cinema Scala inclui ainda imagens digitalizadas do arquivo jugoslavo Filmske Novosti, representado por Mila Turajlic, que falou do simbolismo de “devolver” a Moçambique esse material histórico.
A mostra permanecerá aberta ao público durante todo o mês de Novembro, servindo como um arquivo vivo de um período fundacional da cultura moçambicana.
Fonte: O País