A literatura e a música moçambicana têm-se revelado cruciais para a reflexão sobre a identidade, não como ponto fixo, mas como um território em movimento, permeado por encontros, desencontros e reconstruções constantes.
O poema “Rio Inharrime”, de Otildo Guido, e a música “Xitchuketa Marrabenta”, de Stewart Sukuma, parecem, à primeira vista, propor gestos distintos. Uma obra mergulha na introspecção de um eu que hesita entre o que é e o que finge não ser. A outra explode em corpo, ritmo e pertença colectiva. É precisamente nesse contraste que ambas as obras se cruzam. Juntas oferecem interpretações complementares sobre o ser moçambicano, a partir de dois movimentos distintos: o rio que busca desaguar e a roda que gira para se afirmar.
Logo no início do poema de Otildo Guido, o sujeito poético confessa:
“Sou mistura
do que ainda não sou
e do que finjo não ser”
É uma declaração de identidade fragmentada, inacabada, por vezes negada. Este “ser” em constante desconstrução ecoa experiências reais de jovens moçambicanos que oscilam entre heranças culturais e imposições modernas. Fingir não ser pode significar silenciar raízes para sobreviver ou adaptar-se. O sujeito que se expressa nesse poema está em suspensão, como o rio que ainda não encontrou o seu mar.
A escolha do título “Rio Inharrime”, não é apenas geográfica, é simbólica. O distrito de Inharrime, na Província de Inhambane, é conhecido pela abundância de águas, lagos, riachos e uma ancestralidade ainda muito presente. É um lugar onde a terra se encontra com o mar, como se a geografia projectasse a identidade híbrida do eu poético.
Quando o poema afirma: “Sou praia de água doce, sou rio de água salgada”, propõe uma contradição que é, afinal, profundamente moçambicana: a coexistência de elementos opostos, de culturas sobrepostas, de modos de vida em constante negociação.
Essa tensão também habita na música de Stewart Sukuma, embora por outras vias. Em “Xitchuketa Marrabenta”, não há hesitação. A identidade é proclamada com força e orgulho:
“Eu sou o pé que varre o chão
o pavor da solidão
afugento a escravidão
sou o pobre e sou o pão”.
Aqui, o sujeito canta-se a si mesmo como um corpo colectivo. A marrabenta não é apenas um ritmo, é símbolo da tradição reinventada da resistência cultural. A roda que gira, os pés descalços que levantam poeira, a voz que chama para dançar, tudo isso, na música, configura uma pertença que se vive em comunidade, sem medo do passado e sem vergonha do presente.
Ler o poema e cantar a música permite perceber dois modos de se ser moçambicano: o que procura o lugar e o que o habita com festa.
No poema, há um sujeito que tomba:
“E tomba no chão
para ser realmente de novo
a semente que dá origem
ao recomeço do fruto”.
A queda aqui não é fracasso, mas recomeço. A imagem da semente que morre para germinar faz parte da cosmovisão africana, onde os ciclos são fontes de vida. No entanto, apesar dessa beleza simbólica, o poema falha em dar materialidade às suas imagens. As metáforas como o fruto, semente, chuva, são repetidas, mas não aprofundadas. Falta-lhe o chão, cheiro, gesto. O território de Inharrime poderia ter sido mais vivido no texto, com referências concretas à cultura local, aos rios, aos sons e à memória sensorial da terra.
Em contraste, a música de Stewart Sukuma pisa firme no concreto. A identidade aqui é corpo: “Sou a mão que batuca e que esfrega teu corpo no chão”. A música reinventa a tradição não apenas com palavras, mas com acção. “Vem pra roda, tira sapato, levanta a poeira, senta em baixo, reinventa a marrabenta”. Essa passagem funciona como um chamamento colectivo, um retorno às raízes através do gesto. Não se trata de olhar para trás com nostalgia, mas de transformar o passado em matéria viva.
Mesmo assim, nem tudo são certezas na música. A força celebrativa da letra quase não dá espaço para conflito ou dúvida. A identidade é apresentada como plenitude, como se não carregasse feridas ou ambiguidades. Essa ausência de tensão enfraquece um pouco a potência crítica da canção.
O poema, por outro lado, carrega essa hesitação, e talvez seja por isso que o seu desfecho pareça menos afirmativo. “Enrolado no abraço dos machopes” é um verso bonito, mas algo vago. Após tanta inquietação identitária, o reencontro com o colectivo parece mais um consolo do que uma reconstrução. O poema esboça o gesto, mas não o desenvolve com a mesma força com que a música constrói a roda dançante.
Em última instância, o sujeito poético e o sujeito musical pertencem ao mesmo país. Um interroga, o outro responde. Um procura terra firme, o outro pisa e dança. Um tomba, o outro levanta a poeira. Ambos estão em travessia. Ambos nos oferecem espelhos: da dúvida e da celebração, da mistura e da afirmação. E talvez ser moçambicano seja isso, carregar o silêncio do rio e o som da marrabenta. Porque, no fim, o que queremos todos é isso, um lugar onde a semente possa germinar, o corpo dançar e a alma, enfim, pertencer…
Fonte: O País