Na verdade ela se sente ninguém

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Por: Alfredo Júnior

Quando eu era criança, morava num dos bairros que terminam no chão de areia e começam na poeira dos gritos. O meu pai dizia que amar era ensinar com dureza, mas as suas lições batiam forte demais, deixavam marcas no corpo e buracos na alma.
A minha mãe escondia as lágrimas em panelas vazias e, às vezes, em silêncio. Eu só queria crescer depressa, fugir dali.

Foi numa dessas fugas que conheci a Iva.
Eu tinha uns onze anos e fui parar numa esquina na Baixa da Cidade, por engano ou por instinto. Era uma cidade diferente, barulhenta, cheirava a combustível, cerveja quente e promessas partidas.
Na frente do Luso, ela estava encostada a uma parede suja, a fumar e a fingir que não sentia frio. Tinha saltos altos, daqueles que só via nas novelas, e olhos carregados de maquilhagem e cansaço.
Olhou para mim como quem já foi menina e reconhece outra.

Voltei ali outras vezes, sem que ninguém soubesse. Comecei a vê-la com mais atenção.
A Iva era jovem, mas andava como velha, não porque o corpo estava cansado, mas porque a alma já tinha desistido.
Diziam que era prostituta, que se vendia por pouco, mas ninguém contava o que a trouxe ela até ali.

Com o tempo, descobri que ela também teve um pai, um pai que a chamava de inútil, que a empurrava, que dizia que ela só servia para dar desgosto.
A Iva não fugiu para se perder, fugiu porque ficar era morrer aos poucos.

No Luso, ela encontrou um lugar onde, pelo menos, recebia algo em troca das dores, lá, ela não era amada, mas era desejada, o que parecia suficiente por um tempo.
Dançava com os olhos vazios e o corpo a fingir que ainda era dona de si.
Os homens riam, chamavam-lhe nomes doces, mas nenhum queria saber do que ela sentia depois.

Um dia, quando lhe perguntei se era feliz, ela soltou um riso que mais parecia soluço e disse-me apenas:
“Feliz? Eu só quero ser alguém, mas na verdade eu não sou ninguém.”

Aquilo ficou comigo.

Hoje sou adulta, saí daquela casa, fugi do meu pai, tal como ela fugiu do dela.
Mas às vezes passo pela Baixa e o Luso ainda lá está.
As luzes continuam acesas, como se nada mudasse, e de vez em quando vejo alguém como a Iva, com aquele mesmo olhar cansado e o mesmo silêncio pesado.

A sociedade chama-lhes nomes, julga, aponta, mas nunca pergunta o que é que a trouxe até aqui.

A verdade é que ninguém nasce para se vender, elas apenas não encontraram outra forma de sobreviver.

E todas as noites, quando a cidade dorme, há uma Iva sentada à porta do Luso, a desejar que alguém a veja por dentro.

Na verdade, ela só queria ser alguém, mas o mundo ensinou-lhe que, para muitas como ela,
ser ninguém é o que resta.

 

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