Por: Virgílio Timana
O recente caso da jovem de 17 anos dada como morta e que, dias depois, reapareceu viva enquanto o seu marido era mantido preso e torturado pela Polícia da República de Moçambique (PRM), é mais do que um retrato de falha institucional. É um grito de alerta sobre o colapso ético, jurídico e moral de um sistema que parece mais preocupado em encontrar culpados do que em apurar a verdade.
Abel, um jovem como tantos outros, foi transformado de marido desesperado em “assassino” aos olhos da polícia, dos mídia e, o mais grave, da sociedade. Sem uma prova concreta, sem sequer o corpo da suposta vítima, foi detido durante 15 dias, torturado, coagido a confessar um crime que não cometeu, e libertado sem um único documento assinado.
E o que dizer da PRM? Estamos a falar de uma instituição que, sem confirmar se a pessoa estava realmente morta, decidiu prender e torturar um cidadão com base em “circunstâncias suspeitas”. Isto é investigação ou perseguição? É inadmissível que, em pleno século XXI, ainda se utilize a tortura como método de obtenção de provas — algo absolutamente ilegal, inconstitucional e imoral.
“Prender para investigar” não é justiça. É abuso de poder. É uma inversão do processo legal. Num Estado de Direito, a prisão é uma medida extrema, usada quando há fortes indícios e risco de fuga ou de obstrução da justiça. Não é o ponto de partida de uma investigação.
Mas a polícia não foi a única a falhar. Nós, sociedade, também falhámos. Apontamos o dedo, espalhamos boatos, chamamos Abel de assassino, sem ouvir, sem questionar, sem considerar a possibilidade da sua inocência. Em vez de exigir provas, exigimos punições. Em vez de apoiar, condenamos. Este comportamento colectivo alimenta um sistema de injustiças em cadeia. Quantos “Abéis” estarão hoje atrás das grades, esquecidos, por crimes que nunca cometeram?
Este episódio é mais uma prova do despreparo da PRM na condução de investigações criminais. Um sistema que responde à pressão com violência, que substitui a evidência pela suposição e que expõe inocentes ao linchamento público não pode ser chamado de sistema de justiça. É um sistema de opressão.
E agora, quem vai pagar pelos danos morais causados a este jovem? A imagem pública de Abel foi destruída. A sua dignidade, violada. Os seus direitos, ignorados. E o mínimo que se espera é que o Estado reconheça o erro, peça desculpas públicas e o indemnize de forma justa. Mas, mais do que isso, é urgente que se faça uma reforma séria nas estruturas da PRM, com responsabilização efectiva de quem tortura, abusa e prende sem provas.
Eu não sei se ainda posso chamar isto de país. Este não é o Moçambique em que me reconheço. É um Moçambique onde ser pobre e suspeito é crime. Onde as instituições que deveriam proteger o cidadão se tornam o seu maior pesadelo.
Se queremos um país mais justo, precisamos de começar por valorizar a presunção de inocência. Precisamos de parar de normalizar o abuso policial. Precisamos de exigir que a polícia investigue com inteligência, não com violência. E, sobretudo, precisamos de olhar para cada “Abel” como uma lembrança viva do que acontece quando a justiça falha — e quando a sociedade, cúmplice, escolhe o silêncio.
Por um Moçambique onde a justiça não seja apenas um conceito bonito na Constituição, mas uma realidade na vida de todos.