Severino Ngoenha diz que o diálogo político nacional não é uma iniciativa presidencial e não deve ser. O académico denuncia que o processo foi desviado dos seus objetivos iniciais, apropriado pela Presidência e esvaziado da sua natureza participativa.
O filósofo e académico Severino Ngoenha começou por explicar o que esteve por trás do diálogo político inclusivo em Moçambique. Um processo que, segundo ele, nasceu da dor e que hoje está descaracterizado.
“Pretendemos o melhor possível para o país que é nosso. Pretendemos o melhor possível em termos de realização das pessoas, de um sistema político funcional, etc, mas nos encontramos a percorrer caminhos diferentes. O que nós temos na mesa, a discussão que está sendo feita não corresponde ao que nós tínhamos pensado, ou o que nós propusemos ou o que nós queríamos. Tomou outro rumo”, disse Severino Ngoenha.
Ngoenha revela que o impulso inicial veio em plena crise, com mortes nas ruas e um país em convulsão.
“O país estava a ter destruições enormes, estava a ter mortes enormes, muita gente, em média 10,12,13,14 pessoas por dia. E a pergunta mínima que nós nos poderíamos fazer, que eu me fiz era: o quê que eu faço?”, questionou, acrescentando que em meio a situação que vivia poderia ficar calado ou fazer alguma coisa pelo país.
O académico conta que juntou-se a professores, ativistas e organizações da sociedade civil para criar pontes. O seu principal interlocutor foi Venâncio Mondlane.
“Eu falava com Venâncio duas horas por dia. Eu falava com Nyusi que era presidente, na altura (…) convencemos o presidente Nyusi a convidar as principais lideranças políticas e a sentar com elas. Depois de muita relutância, ele aceitou (…) Venâncio Mondlane escreveu um documento, ele estava fora do país, com 21 pontos, em que ele sugeria que eram os pontos principais, que deveriam constar de uma agenda de reforma no país. Peguei nos 21 pontos e consegui introduzi-los no documento base que tinha que ser discutido e assim começou o diálogo partidário”, explicou Severino Ngoenha, esclarecendo que as ideias principais que nortearam o documento eram as ideias do Venâncio.
De acordo com o acadêmico, o processo foi capturado pelo poder institucional e perdeu o rumo.
“E de repente, aquilo apareceu como uma proposta presidencial do novo Presidente, com os partidos políticos a serem arrastados por trás, nomeou-se um chefe … Tudo o que a gente podia fazer, o que eu podia fazer era, com os membros do partido dizer amigos, vocês não durmam, vocês não pode ser assim, vocês tem que ter uma postura diferente. Quando ele [o documento] foi para a Comissão Política, Comité Central, começaram a haver mudanças. Uma das lutas para mim, eu na altura falava muito com Lutero Simango, era dizer assim: Lutero esta não é uma iniciativa presidencial e não deve ser uma iniciativa presidencial (…) Não aceitem ir a presidência, sentem-se com o Presidente como igual e discutam para fazer propostas de uma maneira livre e autónoma e poder avançar no processo”, disse.
Ngoenha lamenta a exclusão de figuras centrais, como o próprio Venâncio Mondlane.O académico admite erros, mas reafirma que se o processo salvou vidas, já valeu a pena.
Fonte: O País