por: Sara Seda
Em Cabo Delgado, a vida aprendeu a andar de lado, com passos cautelosos, como quem teme acordar um pesadelo que insiste em se prolongar. As manhãs chegam silenciosas, carregadas de memórias de tiros, de casas vazias e de olhares que perderam a capacidade de confiar.
Ninguém sabe direito quem é o insurgente; talvez seja um fantasma com fuzil. Cada noite é longa, e cada amanhecer é um lembrete cruel de que a paz não chegou, nem parece ter pressa em chegar, e sinceramente, nem deve ter comprado a passagem, parece aquele parente que promete visitar: todo mundo fala dela, mas ninguém nunca vê.
O governo tenta negociar, promete soluções, escreve discursos com ar de “agora vai”, mas cada tentativa falha como piada sem graça: todo mundo entende que algo deu errado, mas ninguém tem coragem de rir. As ruas, antes cheias, hoje parecem um tabuleiro de xadrez com peças desaparecidas, casas, lojas, até gente. E as crianças? Brincam de esconde-esconde com o perigo, sem manual de instruções. Acham normal e talvez seja, porque a normalidade parece ter tirado férias permanentes ou sem previsão de regresso.
Os mercados abrem e fecham conforme o sabor das notícias, pois, a insegurança tem um calendário próprio: hoje há pão, amanhã só rumores de ataques, hoje há segurança, amanhã não se sabe, e ninguém se lembra mais se é segunda-feira ou sexta-feira. Ainda assim, entre tiros e desaparecimentos, há quem plante feijão, como quem desafia o próprio destino. É uma resistência que não se mede em bandeiras, mas em gargalhadas nervosas e coragem teimosa: a guerra aperta, mas a vida dá seu jeitinho de rir na cara do perigo, mesmo que, às vezes, seja só para não chorar.
Em Cabo Delgado, a paz que não há virou piada cruel; cada olhar distante é uma oração silenciosa e esperança disfarçada de ironia. A vida, teimosa, insiste, sabendo que o perigo espreita, que talvez, nesse conflito de misturas de vontades, medo e coragem, tragédia e ironia, surja algum dia a semente de um amanhã que se possa chamar de paz.






