Resumo
O combate à corrupção em Moçambique enfrenta desafios profundos, com destaque para a crise de valores e a falta de ética entre os dirigentes, apontados por vozes influentes da sociedade, como o antigo Procurador-Geral da República, Augusto Paulino. Este realçou a ostentação de jovens ligados a altos funcionários do Estado, sem atividade profissional, em contraste com a luta dos jovens com formação académica por emprego. A crítica estende-se à cultura de impunidade e ao sistema político, considerado "estruturalmente bloqueado" para combater eficazmente a corrupção, reproduzindo práticas que minam a sua legitimidade. A ineficácia do sistema judicial no tratamento do enriquecimento ilícito também é questionada, com a falta de controlo sobre os sinais exteriores de riqueza de servidores públicos. Em resumo, o problema da corrupção em Moçambique não reside apenas na falta de leis, mas na sua aplicação seletiva, no mau exemplo das elites e na aceitação social de vantagens ilícitas.
O combate à corrupção continua a ser um dos maiores desafios para a consolidação do Estado de Direito e para a credibilização das instituições públicas. Durante uma conferência sobre o combate à corrupção realizada recentemente, vozes relevantes da sociedade moçambicana alertaram para um problema estrutural mais profundo.
O antigo Procurador-Geral da República, Augusto Paulino, foi directo ao abordar a crise de valores e a falta de referência ética entre os dirigentes. Segundo ele, o exemplo deve partir dos mais altos escalões do poder. Paulino apontou um cenário preocupante: jovens filhos de altos funcionários do Estado, que nunca exerceram qualquer actividade profissional, nem demonstram intenção de o fazer, ostentam um estilo de vida de luxo, frequentando restaurantes caros, conduzindo carros de alta cilindrada, e exibindo-se em círculos sociais com um certo desdém. Enquanto isso, jovens com formação acadêmica sólida veem-se forçados a procurar emprego sem sucesso ou a recorrer ao comércio informal para sobreviver. Quando comportamentos assim são encarados com normalidade pela sociedade, afirmou Paulino, “nenhuma lei conseguirá conter essas práticas”.
Estas declarações reflectem uma crítica séria à cultura de impunidade e ao impacto simbólico do comportamento das elites.
Na mesma linha, o jornalista Tomás Vieira Mário defendeu a necessidade de reformas profundas no sistema político. Para ele, a actual configuração das instituições está “estruturalmente bloqueada” para promover qualquer tipo de renovação autêntica no combate à corrupção. O sistema, segundo Vieira Mário, tornou-se ele próprio gerador da corrupção, reproduzindo práticas que minam a sua legitimidade e eficiência. Uma das causas mais graves dessa degeneração institucional, reforça, é o mau exemplo dado por quem está no topo da hierarquia.
Outro contributo importante para o debate foi dado pelo investigador Baltasar Faial, que levantou dúvidas sobre a eficácia do sistema judicial no tratamento de casos de enriquecimento ilícito. Para ele, falta um controlo real sobre os sinais exteriores de riqueza ostentados por muitos servidores públicos. “Quem investiga os sinais exteriores de riqueza que muito ostenta neste país? Ninguém, a lei esta ali para enfeitar, questiona.
A legislação, segundo Faial, até existe, como é o caso do sistema eletrônico de declaração de bens. Mas a sua aplicação prática é limitada. É possível, por exemplo, declarar a posse de bens de elevado valor sem a obrigação de apresentar qualquer prova da sua origem.
E em um tom crítico, mas ilustrativo, Faial exemplifica: “um funcionário público pode declarar que possui um carro de luxo no início do seu mandato sem justificar a origem desse bem. Mais tarde, ao desviar fundos públicos, utiliza o argumento de que o bem já havia sido declarado anteriormente.” Este tipo de situação, segundo ele, mina completamente a credibilidade dos mecanismos de transparência e fiscalização.
Desta feita, o que os três intervenientes demonstraram, com clareza, é que o problema da corrupção em Moçambique não está apenas na ausência de leis, mas sim na sua aplicação selectiva, no mau exemplo vindo de cima e na aceitação social das vantagens obtidas por meios ilícitos.