Milhares morreram e grande parte de Gaza foi devastada, mas a vida deve continuar, de acordo com o correspondente, que permanece anônimo por motivos de segurança.
Escuridão absoluta
Aqueles que vivem aqui em Gaza não precisam de longas explicações para entender o significado desta guerra.
Basta ouvir por alguns minutos: aviões zumbiam incessantemente sobre nossas cabeças, e ataques aéreos silenciam tudo, exceto o medo que, embora invisível, preenche cada espaço entre nossas barracas e se infiltra em nossos corpos.
Um menino é resgatado após ser pego em um ataque a um abrigo escolar.
À noite, a escuridão é absoluta, exceto pelos clarões dos bombardeios.
Dormimos sabendo que acordar não é garantido.
Cada manhã em Gaza é uma nova tentativa de viver e cada noite um desafio para sobreviver. Esta é a dura realidade em que vivemos.
Sou um de 2 milhões
Sou um dos mais de dois milhões de palestinos que vivem sob o peso do deslocamento. Documento histórias de guerra e desespero enquanto vivencio toda a sua amargura.
Desde que nossa casa foi destruída, em novembro de 2023, a tenda se tornou nossa segurança. Minha família, antes parte do meu mundo particular, agora faz parte das histórias que compartilho com o mundo.
Aqui, a vida é simples e trágica.
Dormir no chão duro, cozinhar na lenha e a busca exaustiva por um pedaço de pão não são mais opções, mas um modo de vida imposto pela crueldade da guerra.
Diante do meu filho mais velho, que ainda não completou 14 anos, vejo o reflexo de uma guerra que roubou sua infância e lhe impôs fardos maiores do que sua idade.
Coragem sem limites
Ele se tornou um especialista em rotas de distribuição de água, pechinchando por pão e carregando pesados galões de água. Sinto um orgulho sem limites pela sua coragem, mas, ao mesmo tempo, uma dolorosa sensação de impotência por não poder protegê-lo do que está acontecendo ao nosso redor.
Minha esposa está tentando criar um oásis de esperança para nossos outros filhos. Minhas duas filhas mais velhas continuam estudando online quando a internet está funcionando intermitentemente e lendo quaisquer livros disponíveis.
Minha filha mais nova desenha em pedaços de papelão desgastados, enquanto meu filho mais novo, de quatro anos, não se lembra de nada além do som de explosões.
Futuro ameaçado
Permanecemos impotentes diante de suas perguntas inocentes. Não há escolas, nem educação, apenas tentativas desesperadas de manter vivo o brilho da infância, diante de uma realidade brutal.
Mais de 625.000 crianças em Gaza foram privadas de educação.
Isso se deve à destruição de escolas e à falta de um ambiente seguro para aprender.
O futuro de uma geração inteira está ameaçado.
Um desenho retrata pessoas morrendo enquanto tentam obter comida de um caminhão em Gaza.
Trabalho com outros jornalistas. Percorremos hospitais, ruas e abrigos.
Carregamos nosso equipamento jornalístico não apenas para documentar eventos, mas também para sermos a voz daqueles, cujas vozes foram silenciadas.
Caminhões de farinha
Filmamos uma criança sofrendo de desnutrição grave, ouvimos a história de um homem que perdeu tudo e testemunhamos as lágrimas de uma mulher incapaz de fornecer comida para seus filhos.
Documentamos uma cena que se repete diariamente: milhares de pessoas correm para chegar a um caminhão de farinha. Eles correm atrás dos caminhões, recolhendo os últimos grãos de farinha do chão.
Eles não se importam com o perigo, uma vez que a esperança de conseguir um pedaço de pão se tornou mais precioso que a própria vida.
A cada vez, vítimas caem ao longo das rotas dos comboios e dos pontos de distribuição militarizados.
Fim da curva
Caminhamos pelas ruas, atentos a cada som, como se estivéssemos esperando o fim a cada curva.
Não há mais tempo para surpresas ou tristeza, apenas tensão e ansiedade constantes que se tornaram parte do DNA dos sobreviventes aqui.
Esta é a realidade que as câmeras não capturam, mas é a verdade diária que tentamos explicar ao mundo.
Documentamos os esforços das Nações Unidas e de suas diversas organizações.
Vejo funcionários dormindo em seus carros para ficarem mais perto das travessias e vejo nossos colegas da ONU chorando enquanto ouvem as histórias dos meus companheiros de Gaza.
Sem suprimentos por dias
Não há ajuda suficiente. As travessias abrem e fecham abruptamente, e algumas áreas ficam sem suprimentos por dias.
As áreas ocidentais da Cidade de Gaza estão superlotadas. Tendas estão espalhadas em cada esquina, nas calçadas e entre os escombros de casas destruídas, em condições terríveis.
O valor da moeda local evaporou. Quem tem dinheiro em suas contas bancárias paga taxas de até 50% para sacá-lo, mas acaba se deparando com mercados quase vazios. O que quer que esteja disponível está sendo vendido a preços exorbitantes.
Não consigo remédios
Os vegetais são escassos e, quando disponíveis, o quilo pode custar mais de US$ 30.
Frutas e carnes são uma lembrança distante. O sistema de saúde está em colapso total, já que 85% dos hospitais de Gaza não funcionam mais e a maioria dos serviços de diálise e quimioterapia foram interrompidos.
Medicamentos para doenças crônicas não estão disponíveis. Não consigo remédios para meus pais, que sofrem de diabetes e pressão alta, e não há esperança de uma cirurgia que possa salvar o braço do meu irmão, ferido em um ataque aéreo.
Duas identidades
Um menino carrega uma garrafa de água por uma área onde as pessoas vivem em tendas.
Às vezes, me sinto dividido entre duas identidades: a do jornalista que documenta o sofrimento e a do ser humano que vivencia tudo isso.
Mas talvez seja aí que resida a força da nossa missão jornalística na Faixa de Gaza: ser uma voz do coração da tragédia, transmitir ao mundo a realidade do que acontece diariamente.
Cada dia em Gaza levanta uma nova questão:
Sobreviveremos?
Nossos filhos retornarão da busca por água?
A guerra acabará?
As passagens serão abertas para que a ajuda possa ser entregue?
Daqui, continuaremos, porque histórias não contadas morrem e porque cada criança, mulher e homem em Gaza merece ter sua voz ouvida.
Sou jornalista.
Sou pai.
Estou deslocado.
E sou testemunha de tudo.
FIM
Fonte: ONU