Todos os textos lato sensu dialogam uns com os outros ou, como afirmam as autoras Graça Paulino, Ivete Walty e Maria Zilda Cury, “[…] cada produção humana dialoga necessariamente com as outras” (PAULINO; WALTY & CURY, 1995, p. 13), o que não é diferente da literatura. Esta asserção é, no fundo, a extensão ou paráfrase do clássico conceito de intertextualidade pelo qual Julia Kristeva é bastante conhecida que diz que “todo o texto se constrói como um mosaico de citações, todo o texto é absorção e transformação de um outro texto” (KRISTEVA, 1974, p.64).
Esta breve introdução justifica o título que atribuí a esta também breve apresentação com a qual gostaria, sobretudo, de partilhar a minha experiência ao ler Canção de Setembro para Zamuzaria Maria, de Rafael da Câmara, e os diálogos para os quais me apelavam os vários poemas deste livro. O pressuposto fundamental que orientou a minha leitura é o de que os vários diálogos que esta Canção de Setembro… estabelece com os autores e as obras que vou apresentar concorrem para a construção das diferentes temáticas cultivadas nesta obra.
O primeiro autor – não pela ordem de aparição, mas pela reconhecida grandeza – que entremeia os poemas desta Canção de Setembro… é José Craveirinha, poeta em grande medida transversal à inteireza da obra –, por um lado pelas características temáticas absorvidas e, por outro lado, pela invocação de outras figuras e autores que Da Câmara faz, mas “retirados” de certa poesia do nosso poeta maior. Craveirinha surge aqui como que a sustentar ou reforçar o retrato da condição humana que, segundo a filósofa alemã, Hannah Arendt, é diferente da natureza humana. A natureza humana corresponderia ao conjunto de elementos sem os quais a existência do homem deixaria de ser humana, e a condição humana é explicada pela autora ao afirmar que “[o]s homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contacto torna-se imediatamente uma condição de sua existência” (ARENDT, 2007, p. 17), o que significa que a condição humana é resultado das circunstâncias em que o homem vive e, por essa razão, é influenciada pelas coordenadas tempo e espaço (o cronótopo). O retrato da condição humana em Craveirinha recai, com a devida empatia e até identidade, quase sempre sobre figuras/personagens que povoam os seus poemas como, por exemplo, a prostituta e a criança, ambas igualmente presentes nesta Canção de Setembro…, o carregador, a dançarina do cabaré, o magaíza, etc. Em Da Câmara, não só recai sobre diferentes figuras/personagens, marcadas por diversos circunstancialismos, como também sobre os sujeitos poéticos da obra, imersos nos diferentes dramas que matizam o “nosso” tecido social que, não obstante, e nisso Craveirinha e Da Câmara são parecidos, levam os referidos sujeitos poéticos a questionar a prevalência, por exemplo, das desigualdades sociais, da indigência, do sofrimento, da guerra, da governação, da violação dos direitos humanos, da corrupção, etc. Para exemplificar, podemos citar poemas como “Moscas gémeas de Bié” (p.13): “Certa vez/Na boca da noite/Sob as asas negras/Vi pela janela duas moscas gémeas/Lambendo merdas bem perto da casas ao lado/Duas moscas gémeas tímidas e parecidas/Riam-se das vozes que vinham do outro lado”; “Aqui ninguém morreu” (p. 43): “[…]//Nossa cidade pintada a cores/Negro e branco e amarelo/O projéctil aceso e lustro/Vem rente a cabeça dos meninos de Bié/E zás!…//Recolheram a arma do crime?/Os bandidos foram caçados e calcinados?/Os marginais foram julgados e presos? […]”; “Partido Político da Oposição” (p. 58): “Baixa esse machado de guerra traidor/Filho da puta!/Senta-te à mesa/Junta-te aos bons/Mesmo o Judas Iscariotes sentou-se à mesa na última ceia/Apesar da traição com trinta dinheiros/Vem…/Puxa a cadeira e senta/Os nossos parceiros já assinaram o cheque/Revemos a Constituição?/Revogamos o mandato (sic) de captura? Fomos todos amnistiados?”; e ainda o poema “Um 25 de Junho estilo a besta que pariu” (p. 70): “E a tocha vem aí/[…] Tende infinita piedade senhor: porque deles só esperamos vozes desquitadas/Vomitando cólera e parindo desilusão!//E a tocha vem aí/Faça frio faça sol/A mágica magia da chama vermelha/Vem aí…/Vem aí…/Vem aí…”
Alguns poemas desta Canção de Setembro… – como sejam “Cantiga para o meu país” (p.17), “Carcaça de tractor numa concha de caracol” (p. 18) –, remetem também para Craveirinha, quando Da Câmara invoca artistas (músicos, em particular) como, por exemplo, Daíco e Fany Mpfumo.
Um outro autor é Luís Bernardo Honwana, com o texto “Papá, cobra e eu”, título parecido com o título do primeiro poema do livro de Da Câmara, “A papaia, o menino e o cão”(p. 11). E por que me lembrei do conto de Luís Bernardo Honwana? Justamente por causa da personagem infantil, cuja construção, neste conto, é revestida de grande complexidade, distante da ingenuidade que se esperaria de uma criança, muitas vezes tomada como simples. Ginho, protagonista da história (que também é narrador), só a título exemplificativo, faz perguntas e afirmações ao pai que tacitamente questionam a não acção de Deus quando o seu pai, o Sr. Tchembene, faz a sua oração, após o episódio em que é enxovalhado pelo Sr. Castro que exige dele uma indeminização pelo cão morto, após ter sido picado por uma cobra que andava na capoeira da casa do Ginho. O pai do Ginho procura, em conversa com o filho, passar a ideia de que tal acontecimento só houve porque Deus assim o quis, mas Ginho desresponsabiliza Deus, dizendo que ele podia ter evitado que o cão do Sr. Castro fosse mordido. Podemos afirmar que Da Câmara revisita, através do poema “A papaia, o menino e o cão”, a complexidade a que me refiro no retrato e construção da personagem infantil, ao colocar a criança como força centrípeta (que atrai para si) e força centrífuga (que tira para fora de si) reflexões inimagináveis, aparentemente banais, mas que, no caso concreto, se relacionam com o conhecimento sobre a essência das coisas e dos seres/entes e sobre a Natureza enquanto entidade suprema:
[…]De repente, não sei porquê, lembrei-me
Da história da papaia
Do menino e do cão
Estavam juntos sentados à mesma mesa
Estavam divertidíssimos
Conversavam de coisas banais
Diziam, por exemplo
Que todas as papaias maduras são amarelas
Que o cão quando é cachorro
É amigo dos meninos
Os meninos adoram cachorros e papaias.
Certa vez!
Aprendi que quando os meninos
Estão sentados à mesma mesa
Devem saber cantar e
Contar histórias
Do nascer e do pôr-do-sol
Que se um menino achar um búzio na praia
Deve dizer que é casa de um bichinho entre os milhões que vivem no mar
Equinodermes, Plâncton, Sirénios, Crustáceos, Celenterados
[…] (p. 11)
Eugénio de Andrade, poeta português, também parece presente nesta Canção de Setembro para Zamuzaria Maria. O poema de Da Câmara, dedicado a Sebastião Alba, que me lembrou o poeta português tem como título “Carcaça de tractor numa concha de caracol” (p.18):
Sabe: gosto dos meus amigos
Modelam a vida sem interferir
Gosto deles quando cantam e encantam
Inventam canções de embalar a alma
E sabem que também é branca a luza da madrugada
[…]Sabe: gosto dos meus amigos
Aqueles que pintam interiores e modelam a ferrugem
Almas insípidas no exílio à luz da cidade nocturna
Onde marulham outras águas
Outras caças no sorriso irónico (p. 18)
Este retrato eufórico (e carregado de lirismo) da amizade que até, num outro viés, lembraria o “Poemazinho eterno” de Craveirinha, lembra o poema “Os amigos”, de Eugénio de Andrade, sobretudo no que à partilha de amor e alegrias diz respeito: Os amigos amei/despido de ternura/fatigada/ uns iam, outros vinham,/a nenhum perguntava/porque partia,/porque ficava;/era pouco o que tinha,/pouco o que dava,/mas também só queria/partilhar/a sede de alegria —/por mais amarga.
Como já dissemos, a construção de considerável parte das temáticas da obra de Da Câmara está ligada às intersecções que ela estabelece com vários outros textos, conscientemente ou não, e, neste domínio, podemos alagar tais intersecções referindo-nos, por exemplo, ao livro de poemas de Filimone Meigos, Globatinol – Antídoto – Ou o Garimpeiro do Tempo, presente no poema “Chamadas telefónicas (ii)”, (p. 23) que funciona, como o próprio poeta afirma, como um oráculo de Muxúngue, remetendo, por conseguinte, para os ataques armados nesta região do país, iniciados em 2013, e autorizados, teórica e paradoxalmente, por um “garimpeiro do tempo” ou, se quisermos, um dos garimpeiros da nossa história.
Com De Medo Morreu o Susto, de Aurélio Furdela, em particular com o conto “A minha morte”, o diálogo é estabelecido através do poema “Epitáfio” (p. 26), em que a morte é descrita sobretudo como um estado de sensações: “Só sei que já parti/E que vou chegando devagar/Singrando na fuligem melancólica/Sobre a planície verde com espigas de bronze/A densa madrugada tamborilando as sete balas vazias”. Além disso, o poema “Fim de citação” (p. 28) revela, por um lado, um diálogo com Chitlango, Filho do Chefe, de Chitlango Khambane e André-Daniel Clerc, precisamente com o capítulo primeiro deste livro, denominado “O escorpião dentro do pilão” e tal se pode ver pela epígrafe “Um escorpião dentro do pilão”. Por outro lado, e isto mostra a preocupação do poeta com temáticas mais universais, há um subtil diálogo com o filósofo austro-britânico, Karl Popper, a quem o poema é dedicado, cuja reflexão sobre a tolerância – conhecida como o paradoxo da tolerância – na sua obra A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos, já foi usadas para analisar a guerra entre Israel e Palestina que, no poema em causa, se resumiria na questão “A guerra próxima: o próximo judeu?”, em que, tal como o protagonista de Chitlango, Filho do Chefe esmaga um escorpião no pilão, esta seria provavelmente uma analogia do que a história nos legou até agora sobre esta guerra.
Temos ainda, neste livro, o “Let my people go” que nos lembra Noémia de Sousa (e também o Livro de Êxodo, da Bíblia Sagrada e até a canção de Louis Armstrong), “inserido” num poema intitulado “Maçanica para uma mulher de Misrata” (p. 38) que fala sobre a cidade líbia, Misrata. No poema é criticada a acção do Ocidente que muito bem se revela numa metáfora que gera uma ironia que atinge o sarcasmo nos versos seguintes: “O tanque subtil do diabo-mor ocidental/Toca piano no centro da cidade de Misrata”.
Os diálogos são vastos. Há outros com escritores e músicos que não podem ser desenvolvidos nem explicada a sua natureza e papel nesta Canção de Setembro… (como, por exemplo, diálogos com escritores como Rui Knopfli, Eduardo White, João Paulo Borges Coelho, com o músico Alexandre Langa, etc.). O importante talvez seja compreender a poesia de Da Câmara como que revestida de subtilezas diversas e de uma certa dose de lirismo, mas também de uma contundência (esta que se vê em Craveirinha), ao, por exemplo, abordar questões sociais actuais, desde problemas da maioria anónima do nosso país às atitudes e posturas reprováveis dos nossos governantes que mantêm este estado de coisas, e é provavelmente por estas e outras razões que o poeta afirma num poema com cujo título termino esta apresentação: “Sinto que este momento presente me assassina” (p. 67-68). No fundo, os momentos presentes que vivemos assassinam-nos a todos, todos os dias.
Muito obrigado pela atenção!
Fundação Fernando Leite Couto, aos 3 de Julho de 2025
Referências bibliográficas
ANDRADE, Eugénio. (1956). Até amanhã. Lisboa: Guimarães Editores.
ARENDT, Hannah. (2007). A Condição Humana. 10.ª ed. Trad. Roberto Raposo. Rio do Janeiro: Forense Universitária.
CÂMARA, Rafael da. (2023). Canção de Setembro para Zamuzaria Maria. Maputo: Gala-gala edições.
KRISTEVA, Julia. (1974). Introdução à Semanálise. Trad. Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo: Perspectiva.
PAULINO, Graça; WALTY, Ivete & CURY, Maria Zilda. (1995). Intertextualidades: teoria e prática. Belo Horizonte: Editora Lê.
Fonte: O País