Eram 13h24 e milhares de adeptos terminavam de entoar no Dragão o hino do FC Porto, no último adeus a Pinto da Costa, quando os sismógrafos dispararam na região de Lisboa.
A mais de 300 quilómetros de distância, aquele abalo de 4,7 na Escala de Richter foi sentido como um sinal do além: o «Presidente dos Presidentes» fez a capital tremer uma última vez.
Por vontade do sucessor André Villas-Boas, a que a família de Pinto da Costa acedeu em cima da hora, o estádio abriu portas e recebeu no relvado, coberto com a bandeira do FC Porto, o caixão do homem que liderou durante 42 anos o clube, ladeado por 26 troféus de conquistas nacionais e internacionais em diversas modalidades.
Por vontade expressa de Pinto da Costa, nenhum membro da atual Direção do FC Porto se juntou aos mais de 15 mil adeptos que compuseram as bancadas. Na quase vazia tribuna presidencial, pontuavam apenas duas figuras dos órgãos sociais do clube: António Tavares, presidente da Mesa da Assembleia Geral, e Fernando Freire de Sousa, representante do Conselho Superior.
Mais composta estava a tribuna VIP, com jogadores da equipa principal de futebol e de outras modalidades, presentes no estádio, tal como na igreja no dia e na véspera. Houve até quem não contivesse as lágrimas na hora do adeus, como o central Zé Pedro.
O funeral de Pinto da Costa teve dois epicentros unidos pela Alameda das Antas, construída em terrenos do antigo estádio, que tem curiosamente a última residência de Pinto da Costa a meio caminho.
Entre as portas 24 e 25 do Dragão, adeptos anónimos fizeram um impressionante memorial improvisado, onde desde sábado à noite colocaram milhares de cachecóis azuis e brancos, além de velas, camisolas, bandeiras e recortes de jornal.
500 metros acima, a Igreja de Santo António das Antas foi revestida de tarjas da claque e tomada por elementos que controlavam as entradas, reservando-se até ao direito de validarem a admissão na igreja, manchando a solenidade da cerimónia.
Na hora do adeus, houve potes de fumo e bandeiras, cânticos [do mais recente tema «O Porto» ao mais antigo «Pinto da Costa, allez»] a misturarem-se com o toque a rebate dos sinos, ao som de «Treze de Maio», que encerraram a missa de corpo presente presidida pelo Bispo do Porto, D. Manuel Linda.
«Ele agora vai interceder junto de Deus. Em termos desportivos não, porque penso que Deus não se mete nessas coisas. Mas se virem outras coisas estranhas a acontecer, já sabem… foi ele», disse na homilia o cardeal D. Américo Aguiar, como que a adivinhar o simbolismo do tal fenómeno natural que muitos evocaram como paranormal.
«Quando acabou o hino, as cadeiras na sala de imprensa do Benfica até tremeram», ouvia-se mais tarde, entre vozes indistintas, numa carruagem do Metro, de alguém que acabara de tomar conhecimento da coincidência.
Voltando ao adro da igreja, por lá passaram ilustres como o primeiro-ministro Luís Montenegro, o ex-Presidente da República Ramalho Eanes, antigos craques que alcançaram as maiores glórias pelo clube – Deco, Futre, Ricardo Carvalho, Derlei, João Moutinho, Pepe, Sérgio Conceição, António Oliveira, Rodolfo Reis… –, representantes de várias instituições – até de Real Madrid e Barcelona. Faltaram os rivais de Lisboa, que não se fizeram representar nem emitiram qualquer nota institucional, e o tema não escapava às conversas de portistas anónimos.
Entre o ruído dos ultras, havia sobretudo o silêncio dos adeptos comuns, que ficaram do lado de fora da igreja, trocando o luto tradicional por roupa azul, em cumprimento da última vontade do presidente honorário.
Muitos já não votaram em Pinto da Costa nas últimas eleições. Ainda assim, reconhecem-lhe méritos e um papel incontornável na história.
Pode quase dizer-se que Pinto da Costa morreu duas vezes.
A primeira quando a 27 de abril de 2024 perdeu o seu propósito de vida durante longos 42 anos.
Acabada a hegemonia de décadas, saiu gorada a estratégia de dividir para reinar, ainda mais quando a beligerância com que brindava os rivais acabou por se virar para os adeptos do próprio clube.
Não há como fazer uma hagiografia de alguém assim, de um dragão de luzes e sombras. Para lá de presidente, foi também um baluarte da contestação ao centralismo, que apoiava ativamente instituições da cidade e da região. Provocador, inconformado, orgulhoso, astuto, culto, bem-humorado, entre tantas outras facetas que o tornaram numa personalidade complexa e fraturante.
As polémicas foram quase tantas como as conquistas. E agravaram-se quando decidiu entregar-se de corpo e alma a um séquito funesto que o afastou do adepto comum.
Morreu uma figura maior. E o momento da sua morte fez jus ao seu legado.
O cortejo foi tumultuoso e aclamatório alameda abaixo até ao estádio e depois, pelas ruas do Porto oriental, até ao crematório do cemitério do Prado do Repouso.
Mais do que lágrimas, a cerimónia teve palmas e gente grata pela oportunidade que o FC Porto de Pinto da Costa lhes deu de poder tocar o céu, de ser tão grande como os maiores do mundo e ter ali ao alcance da mão troféus que dantes pareciam um sonho inalcançável para um clube português.
Gente como Márcio Lima, que, sentado umas filas abaixo de Anselmi e os seus pupilos, no Dragão, acariciava um álbum que guarda como relíquia. No interior, fotos dele ao lado de ídolos como Fernando Gomes, Jardel, Pepe, Sérgio Conceição. Mas as primeiras páginas eram dedicadas a uma imagem com Pinto da Costa e o respetivo autógrafo.
«O meu avô morreu em 2020. Foi ele que me ensinou a ser portista. Ele adorava o Pinto da Costa. Eu vim aqui também por ele, prestar-lhe esta homenagem», diz ao Maisfutebol este jovem adepto, que veio de Barcelos acompanhado pelo cunhado.
Para lá do homem de defeitos e virtudes, permanece o símbolo.
Não será arriscado dizer que cada portista tem a sua história com Pinto da Costa. A de Maria Isabel Gonçalves é particularmente tocante.
Junto ao gradeamento, com aquele mar de cachecóis a seus pés, esta portuense de Campanhã pede que lhe escrevam, em nome do sobrinho, uma dedicatória numa bandeira do FC Porto: «Do Nuno André, que deu a vida em Sevilha pelo clube que amava. A tua morte não foi em vão.»
«O meu sobrinho foi aquele menino que morreu afogado em Sevilha, uma hora antes da final [da Taça UEFA, frente ao Celtic, em 2003]. Ainda hoje, quando o FC Porto ganha, a vitória é sempre para ele», recorda à reportagem do Maisfutebol.
Nuno André tinha 17 anos e levava consigo o mesmo casaco azul que a tia agora traz vestido, 23 anos depois.
«Ele morreu afogado com este casaco. Fui eu que fui reconhecer o corpo. Vou deixar um chapéu aqui. O casaco não consigo. Não consigo separar-me dele», emociona-se.
E, então, revela: «Foi o Pinto da Costa que lhe fez o funeral. Pagou tudo, até a campa no cemitério do Prado do Repouso. Só lhe posso agradecer. Agora, ele vai para juntinho dele.»
Fonte: Mais Futebol