O sol ainda nascia quando Bobole, no distrito de Marracuene, se transformou num palco de horror e luto. O que parecia ser mais um dia normal na Estrada Nacional Número Um (EN1) terminou em sangue, gritos e revolta: uma criança de apenas 12 anos morreu atingida por uma bala disparada pela Polícia da República de Moçambique (PRM).
A cena aconteceu pouco depois das cinco da manhã, quando um carro proveniente da África do Sul, com destino à província de Manica, deixava o posto de controlo de Nyongonhane, onde haviam pernoitado.
“Minutos depois, o veículo foi perseguido por agentes da PRM que exigiam documentos ao motorista. Ao tentar apresentar os papéis, um disparo. A bala perfurou o vidro traseiro e atravessou a nuca de uma criança que seguia no banco de trás”, contou Mathew Nyamunda, transportador da viatura atingida.
A morte foi imediata, mas os presentes só se aperceberam instantes depois do sucedido.
No interior do carro, o sangue estampado nos assentos e o cartucho da bala abandonado no asfalto tornaram-se provas do terror.
O tiro não só ceifou uma vida da criança, como acendeu a fúria da população local. Testemunhas relatam que os quatro agentes, ao perceberem o erro, tentaram fugir, três conseguiram, mas um não conseguiu escapar. Foi cercado, linchado até à morte diante de dezenas de pessoas revoltadas.
“Levaram plásticos, capim e colocaram nele. Queimaram as pernas dele, mas conseguiu levantar e sair para estrada, mas o trouxeram de volta e incendiaram todo o corpo dele”, relatou Salaudina Samson, testemunha.
Ainda assim, os tumultos prevaleceram, e mesmo para tirar os corpos do local, a polícia teve dificuldades, isso porque a população não permitia a passagem de nenhum carro e muito menos a remoção do corpo do agente da PRM.
“Vieram outros polícias que pediram para levar o agente que foi morto, e nós perguntámos como é que eles queriam levar aquele agente sem que se responsabilizassem com a criança morta e que ainda estava no interior do carro?!”, reclamou Egidio Chirindza.
Só por volta das oito horas é que os corpos foram removidos, mas a polícia teve de lançar gás lacrimogêneo para dispersar a população e conseguir remover os corpos.
Em reacção, o Comando-Geral da PRM, atraves do seu porta-voz Leonel Muchina, confirmou o sucedido e admitiu “imperícia” e irresponsabilidade por parte dos agentes.
“Os agentes que se faziam acompanhar deste que perdeu a vida encontram-se sob custódia e a eles vai lhes caber um processo disciplinar, com proposta de expulsão, porque não nos revemos nessa atitude”, declarou Leonel Muchina.
A polícia garante, também, toda assistência à família do menor para realização das cerimónias fúnebres.
Mas, para a comunidade de Bobole, as palavras não foram suficientes. A dor da perda de uma criança e a revolta contra a impunidade transformaram a estrada num campo de protesto.
O dia parou em Bobole
Durante mais de sete horas, o tráfego esteve paralisado, criando filas quilométricas, pois populares colocaram carros parados no meio da estrada como forma de impedir a transitabilidade de outras viaturas. transtorno para muitos, que tiveram suas agendas atrasadas e algumas canceladas.
“Estou aqui desde às cinco horas, venho da África do Sul e vou a Maxixe, mas já são 12 estamos aqui parados, crianças estão cheias de fome, vou a uma cerimônia familiar, mas terá de ser adiada”, contou Luís Mbazima.
Eram longas horas de espera que muitos preferiram abandonar as viaturas, estendiam suas capulanas, na estrada ou mesmo na berma a observar tudo o que acontecia ou mesmo para dormir.
“Nós saímos do Romão. Temos trouxas de hortícolas e vamos vender. Não sabemos o que os nossos filhos vão comer hoje e nem sabemos como é que iremos voltar para as nossas casas, pois não temos dinheiro e não mais chegaremos ao mercado. Se não tivesse parado por aqui, chegaria a Manhiça às 6 horas para vender e, por volta das 15 horas, regressar à casa” desabafou a vendedora Cacilda Mboene.
Quem não aguentava a espera caminhava longas distâncias a pé, não importava a idade e muito menos a carga que carregava.
Só por volta das 12 horas é que o trânsito voltou a fluir, naquele ponto e milhares de pessoas, puderam seguir viagem para os diferentes pontos do país.
Fonte: O País