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Diante das tarifas unilaterais dos EUA e do enfraquecimento das regras comerciais globais, a OMC enfrenta um ponto de viragem histórico: será capaz de adaptar-se às novas dinâmicas geopolíticas ou afundar-se-á num caos baseado em acordos bilaterais descoordenados?
A Organização Mundial do Comércio atravessa uma das mais severas crises da sua existência. A sua paralisia decisória, a erosão da confiança nas suas regras e o enfraquecimento do seu mecanismo de resolução de litígios colocam em risco o futuro do sistema multilateral de comércio. Um sistema baseado em regras universais, construído ao longo de décadas, dá agora lugar a uma lógica de acordos ad hoc, bilaterais e potencialmente caóticos. No centro desta viragem está a necessidade urgente de reforma institucional – ou, como escreve Hector Torres, trata-se de um momento de “reformar ou morrer”.
Um sistema sob ataque… e sem defesa
Desde o regresso de Donald Trump à presidência dos EUA, a política comercial americana tem sido marcada por tarifas unilaterais justificadas por princípios de “reciprocidade”. Para muitos observadores, trata-se de uma ameaça directa ao princípio da nação mais favorecida que sustenta a OMC. No entanto, como destaca Torres, seria impreciso afirmar que os EUA estão a destruir um sistema que ainda funcionava plenamente. Na realidade, a OMC tem sido, há já algum tempo, uma instituição disfuncional.
O veto como norma e a ilusão da igualdade
A adopção da regra de consenso absoluto — em que qualquer país pode bloquear decisões — transformou-se num mecanismo de bloqueio sistémico. Na prática, mesmo as reformas mais elementares tornam-se inviáveis. A tradição de negociação informal entre grandes actores deu lugar a uma falsa democracia em que todos bloqueiam e ninguém lidera. A retórica de que se trata de uma “organização dirigida pelos membros” serve, hoje, mais para inibir do que para estimular a acção do secretariado.
O dilema das “economias em desenvolvimento”
Outro entrave estrutural reside no conceito de “país em desenvolvimento”. Cerca de dois terços dos 166 membros da OMC auto-declaram-se como tal, usufruindo de condições especiais e diferenciadas. O problema? Muitos desses países, como China, Índia e Brasil, são economias altamente competitivas em vários sectores. Sem critérios claros de graduação, a perpetuação desse estatuto gera distorções e esvazia os incentivos para o lançamento de novas rondas comerciais.
China: o paradoxo central
A China, agora defensora do sistema multilateral, é também fonte de tensão para o mesmo. A sua economia de orientação estatal choca com as premissas liberais da OMC. A presença do Estado nas decisões empresariais, os subsídios ocultos e o proteccionismo selectivo criam um terreno fértil para conflitos. A proposta de “ocidentalizar” o modelo chinês é irrealista, mas a organização pode e deve reforçar as regras de transparência sobre subsídios e influência estatal como forma de mitigar os efeitos distorsivos.
Reforma do sistema de resolução de litígios
O órgão de apelação da OMC está inoperante desde 2016, consequência directa do bloqueio dos EUA à nomeação de novos juízes. Embora a sua recuperação seja essencial, Torres argumenta que essa não deve ser a prioridade inicial. Primeiro, é necessário um consenso mínimo sobre o conteúdo das regras. Debater como interpretá-las, sem antes saber o que elas efectivamente representam, é um exercício fútil.
Para onde vamos?
A proposta de Torres para sair do impasse passa por reinterpretar o consenso, permitindo decisões com base numa maioria qualificada. Um modelo de “dupla maioria” — 65% dos membros representando 75% do comércio mundial — poderia destravar negociações. Em paralelo, sugere-se um “cláusula de paz” temporária sobre a nação mais favorecida, permitindo que acordos bilaterais com os EUA não sejam automaticamente impugnados, desde que se mantenham abertos a renegociação global.
A OMC enfrenta, de facto, o seu momento “whatever it takes”. A sua sobrevivência dependerá menos do que estiver escrito nos tratados e mais da coragem política dos seus membros para reinventar o multilateralismo. Sem uma acção concertada, será inevitável o colapso do sistema de comércio baseado em regras. E, nesse caso, o que emergirá não será a liberdade, mas o caos.
Fonte: O Económico